12 de março de 2010

Memórias de Hospital IV


O quarto, localizado na parte antiga do edifício, estava envelhecido. As paredes mostravam uma maquilhagem há muito abandonada com fendas a atravessarem as rugosidades de uma pele disfarçada de escamosas cascas. Cútis de uma cor em tempos esverdeada e hoje, epidermicamente idosa, transformada em cor incógnita esquecida na paleta do pintor. O tecto, outrora talvez branco, tinha tingido de cinza e negro as suas próprias vestes de mendigo desprezado pelo tempo e a miséria. O chão, de limpeza gasta, reflectia o seu céu como o poluído rio reflecte as negras nuvens de uma tarde de tempestade, com um brilho que mais não era que uma ténue limpeza matutina que se consumia a si mesma em poucas horas. Na entrada, para não discordar com o ambiente global, seis portas de madeira, se madeira lhe podemos chamar, com muitos anos contados e já poucos por contar. As longas portadas estendiam-se desde o chão até ao tecto, mais dignos de Polifemo que de Ulisses, mas tão estreitos, que nem a pouca roupa necessária para esta breve permanência comportaria partituras de menestréis. Seis eram as portas; seis eram as camas: quatro já ocupadas; uma desabitada e uma outra à minha espera. A cama número um, aquela que me aguardava para dar-me guarida durante a minha permanência, era a primeira do lado direito, de branco bege ou bege claro conforme a luz incidia nos seus ferros, parecia, junto com as restantes, ser a coisa mais recente de um aposento amplo mas escuro. Três camas à direita e outras três à esquerda separadas por uma distância uniforme e invisível que permitia a colocação de cortinas semi-translúcidas, paredes efémeras e rosadas em tempo de privacidade íntima ou de consulta diária. Ao fundo, como catarata no deserto, estendia-se a quase toda a amplitude da parede as portas de alumínio branco que permitiam o acesso à utopia do exterior, fechada ao anoitecer como bloqueio de um sonho que só existe acordado.
Após os primeiros instantes de reconhecimento e apresentação aos meus colegas de infortúnio, pude finalmente recompor-me de um dia que prometia mundo e se tornou fundo. Sabemos onde vamos mas nunca podemos dizer se lá chegamos. Curiosamente a primeira ideia que assomou à minha cabeça, foi uma recordação da adolescência em que ouvia, junto com os meus amigos, um disco em vinil de Raul Solnado sobre a estadia num hospital. Dizia a ingénua personagem que o tinham colocado num quarto particular enormemente amplo e arejado e que, para não se sentir tão solitário, lhe teriam juntado mais trinta e um doentes mais para o acompanhar na sua solidão. Retirando o número de pacientes, anacronicamente deslocado, de facto senti-me igual, embora cedo percebi que o número amplo somente seria uma desvantagem durante as ruidosas noites que se seguiram.

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