Se até ao dia de carnaval os dias tinham transcorrido calma e positivamente, a partir desse dia, como por efeito de uma estranha força metafísica, o caos apoderou-se do, até então, parcimonioso estado natural das coisas. Como uma força imparável a desordem foi, paulatinamente, tomando conta das situações como um vírus sem vacina nem bálsamo que lhe controle o avanço. Tudo começou na noite de carnaval, como se nesse adeus à carne desse início uma quaresma de Babel onde qualquer acto do quotidiano se transforma na ininteligibilidade das acções dos outros. Os outros, neste caso eram os servidores públicos adidos ao hospital.
Tinha adormecido cedo pois a acumulação de vigílias tinham provocado uma sonolência incessante, melíflua, difícil de aplacar pelo impedimento de movimentos correntes, forçado antídoto de Hipnos. Acordado em sobressalto pela tardia entrada de um novo paciente para enfermaria número dois que bradava qual trombeta de Jericó como querendo derribar muros de abandono e desassossego. Colocado na cama número três, o ancião nonagenário, sentia-se abandonado pela família que, numa última e infrutífera tentativa de convence-lo a ser visto pelo médico, acabou por arrasta-lo, forçadamente, ao hospital já com indícios de um princípio de pneumonia. Ele não percebeu as boas intenções de quem o amava. Desde a sua entrada na enfermaria e até os primeiros raios da manhã, gritou, evocou, proferiu, improperou, injuriou, chorou e clamou. A paciência e o cansaço provocaram em todos nós um desagrado e uma certa irritação pela impossibilidade, dado o volume do seu tom de voz, de mergulharmos nas águas de Morfeu. Essa foi a razão dos constantes chamamentos que, todos nós, passageiros moradores do aposento, fizemos às auxiliares e enfermeiras de retém nessa noite. Para nós, um calmante para ele, significava um sedativo para nós, mas as nossas contínuas súplicas somente contribuíram para um maior abandono e uma maior lassidão por parte das que deveriam ser as garantes do nosso descanso. Jamais em vida testemunhei semelhante encarniçamento, fúria, rancor até, sobre nenhum ser humano, muito menos vinda de quem tem a obrigação e o ofício de o cuidar, muito menos faze-lo sobre quem precisa, na decrepitude da sua existência, de afeição e amparo redobrados pois, na sua senilidade, mais pesado que a dor nos ossos e nos membros é a dor da indiferença, do desamor e do desapego. Ouvir palavras vindas de uma enfermeira, incomodada pela alteração de uma normal rotina de apatia, enraivecida talvez pelas horas acumuladas em clínicas privadas onde a recompensa nos transforma a sensibilidade, ouvir palavras, repito, como «…para que é que te tiraram do lar. Estavas lá tão bem», ou «mais valia que fosses desta pra melhor e nos deixasses sossegados».
Por quê Hipócrates?
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