6 de julho de 2010

As palavras que nunca te direi


...Foi amor que não retive,
e se calhar distraí-me,
Qualquer coisa que encontrei.
(Alfama, Madredeus)

As palavras que nunca te direi

Mesmo Dali não sendo um de seus pintores favoritos, considerava A persistência da memória uma das obras de arte mais expressivas dos anseios humanos. Destroçar as marcas irreversíveis da vida, possibilitar a conjugação atemporal dos verbos, fazia do pintor espanhol um verdadeiro Salvador da alma, geneticamente melancólica. O enquadre daqueles relógios derretidos fazia lembrar uma tela retirada da ficção científica, onde cada um ajusta o tempo e o lugar, para voltar nas trilhas perdidas do caminho e viver a insistência daquilo que não cessa de não se escrever. Laura acreditava que aquela era a imagem mais perfeita da máquina do tempo que cineastas e escritores tanto tentaram reproduzir em suas línguas e linguagens, mas que não chegaram à magnitude Dali.
            Havia pouco, outra tela lhe causara uma vertigem real, de que havia voltado no tempo, e que desde então vivia sua vida cotidiana paralelamente a uma vida virtual. A vertigem ocorrera devido a um salto num tempo passado, onde uma das trilhas que estava fechada fora aberta, e sua vida paralela continuara dali, para os dias atuais. O tempo de agora é um ponto de cruzamento do real e do virtual, mas é o espaço o que há de mais labiríntico nesta trama, pois é a falta de um espaço no instante, o que deixou Laura nauseada, sorumbática, sem saber onde pisar.
            O tempo voltara num determinado verão de sua adolescência quando conhecera um verdadeiro príncipe chamado Miguel. Laura menina encantou-se primeiramente com o porte e a beleza daquela majestade, mas foi a gentileza no trato e a possibilidade de conversas intermináveis o que realmente a fisgou. Naquela altura, foram horas seguidas de palavras, dias inteiros de espera para que a  coragem viesse enlaçar um primeiro beijo. Mas o único entrelace que ocorreu foi o das mãos. Foram meses de mãos dadas, que cravaram na pele a sensação de uma maciez, que nunca mais experimentaria. As mãos de ambos eram macias e os dedos longos pareciam ter sido desenhados um para o outro.
            Tudo isso não foi suficiente para que Laura pudesse fazer uma boa escolha para o primeiro amor de verão. Aquele que chega com o frescor da juventude, com a efervescência da pele, mas também com a inibição dos gestos, a vergonha do corpo, e a marca dos amores já impressos da infância. Laura distraiu-se com outras paisagens, nem tão belas paragens e se perdeu de Miguel. Ela o perdeu, sem sequer ter noção de que isto acontecia: perder-se aquilo que mal se tinha tido. O primeiro amor de verão terminou sem beijo, sem calor, preparando o outono que se aproximava.
            Foi no inverno que o calor de Laura e Miguel derreteu a geleira de uma noite festiva. Beijos ardentes, corpos colados, as mãos já tão conhecidas a deslizar em lugares quase inexplorados, num silêncio perturbado pela música que embalava outros corpos, alheios à explosão do fogo que ardia, única e exclusivamente para os dois, naquele réveillon. Foi um verdadeiro despertar de algo que havia hibernado em pleno verão.
            Mas o novo ano não seria promissor para este amor. Logo em seus primeiros dias tratou de separar quase para sempre aquele calor. Foram apenas fogos de artifício, festivos, esplendorosos, mas que duram apenas uma festa. A vida também não foi generosa, e cada um seguiu seu caminho em terras distintas daquela que os havia unido. Nunca mais se viram, muito poucas notícias ao longo de muitos anos. Quase trinta.        
            Até que um dia, Laura embora muito resistente, cedeu em aceitar o convite para um certo tipo de exposição, na qual várias telas se conectam e interagem. Uma modalidade de arte moderna. Ficou maravilhada pelos sentimentos que esta experiência lhe trouxe. Uma gama de recordações lhe retornou: cheiros, sons, paladares, imagens e especialmente uma sensibilidade tátil, de um certo toque de mãos, que era inconfundível para ela.
            Nesta gama, as conversas intermináveis retornaram, as afinidades de interesses, e especialmente o frescor de uma alegria, que ela não se lembrava mais qual era a cor. Era uma vida virtual que acontecia, paralelamente a sua vida quotidiana pautada de muito trabalho.
            Nessa tela, que também funciona como uma máquina do tempo, o tempo não pára, não volta, só avança. Ele é pontual. Mas há um fuso de horários e uma falta de espaço que permitem a sensação onírica, fictícia de um encontro impossível. As imagens distorcidas da tela e uma voz que chega com atraso confundem o que é real com aquilo que é puramente fantasia.
            Era real a conversa em dia, o saber da vida do outro, profissão, filhos, amores e dissabores. Era ilusória a sensação que ao cruzar a esquina esbarra-se com aquela voz amável. Era real a coincidência das palavras e pensamentos, típicos de quem vive uma comunhão de visões. Era ilusório o olhar que aquece o vestido novo especialmente colocado para seduzir. Era real a lacuna da memória preenchida pela lembrança um do outro. Era ilusório o encontro marcado no mesmo lugar, no mesmo horário.
             A tela em branco ilumina agora a vertiginosa experiência de temperar o quente e o frio das águas que se escoam no leito de uma vida. O rio segue e com ele leva as palavras que nunca te direi.  

 Ana Paula Gomes

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