7 de abril de 2011

Longe da Vista



Longe da Vista
Este ensaio visa uma análise da frase: “Enquanto facto social, a ligação prisão-crime está longe de ser linear”. 

Para compreendermos esta ligação prisão-crime no âmbito da sociologia, devemos analisar a sua história, sobretudo a mais recente, a sua evolução, principalmente nos últimos trinta anos, assim como alguns dos teóricos que a ela se dedicaram.

A prisão, enquanto facto social, tem uma ligação com a sociedade e esta ligação é explicada sobre quatro lógicas históricas (Cunha, 2008): i) Como expiação ou retribuição à sociedade em virtude de um crime ou desvio. Um pagamento social através de um sistema judiciário; ii) Como dissuasão à sociedade para a não infracção; iii) Como neutralização dos actores desviantes de forma a não causarem danos; iv) Como readaptação ou “ressocialização” à colectividade (ideias do Humanismo europeu). Vemos assim a prisão como uma reacção ao crime no binómio crime-castigo.
Esta ideia nunca foi consensual no seio das ciências sociais, onde os seus teóricos não viram tão clara esta relação entre prisão e crime. Durkheim já falava da prisão como instrumento de controlo social, útil ao Estado na medida em que serviria como mudança da moral (Ferreira, 1995). O autor avança com uma ideia que marcaria as análises futuras sobre o crime, considerando-o como uma operação de classificação social, onde é o controlo e não o desvio a razão de existência da prisão (Idem).
Também Focault, veria a prisão da sua época não como uma instituição supressora de infracções mas, como um instrumento regulador e repressor e, como tal, (re)produtor de delinquência (Idem, ibidem). Este autor idealizou uma prisão de correcção, não de punição/repressão ou castigo, mas como um instrumento disciplinador. Para isso, seria necessário conhecer, identificar, classificar e orientar os indivíduos para, assim, conseguir uma reintegração válida na sociedade. Focault e outros autores dentro desta linha, previram um declínio progressivo da prisão como instituição e “(...) a sua posterior substituição por instrumentos de controlo mais difusos. (Wacquant, 2004), todos eles, articulados entre si (fábricas, escolas, hospitais), criariam hábitos de trabalho e de autocontrolo nos indivíduos reduzindo, assim, as prisões a uma população residual. O tempo viria a contrariar esta tese com a multiplicação, nos últimos trinta anos, da população prisional.
Sobre este aumento de “stock” prisional, alguns autores (Rusche e Kirchheimer, 2003) apontam para um carácter economicista da prisão, com uma relação directa entre a prisão e o desemprego uma vez que a sociedade está mais predisposta à punição em tempos de crise e desemprego. Para Wacquant (2004), esta relação economia-prisão não está tão directamente ligada com o mercado de trabalho mas sim com a escassez de recursos, isto é, um meio de gestão das populações marginalizadas. Para o autor, a demissão da responsabilidade social por parte do Estado mais concentrado na expansão do aparelho punitivo que no aparelho social (Pereira, 2009), levou à multiplicação de reclusos. Apesar da estagnação do crime nas ruas, a população prisional europeia triplicou na Europa e quintuplicou nos EEUU (Cunha, 2008).
Mas, a que se deve este aumento do aparelho punitivo e consequente massificação prisional? Em primeiro lugar à substituição do sistema social pelo penal, mais acentuado nos EEUU que na Europa. Foi o velho continente que tentou um afastamento dos pequenos delinquentes das prisões através de várias medidas (pena suspensa, trabalho comunitário, entre outras), embora, como se veio a verificar, não diminuíu o encarceramento nem o efeito de hipertrofia prisional. As razões? Por um lado o incremento do tempo dentro dos presídios, pela dilatação das penas; por outro lado, houve um maior recurso à prisão para as infracções mais graves. A alteração das práticas judiciais joga também aqui um papel importante nesta conjuntura uma vez que, devido à pressão pública (e consequentemente política), tornam-se mais severos na aplicação de penas e no alongamento do recurso à liberdade condicional. Mas, será que este tempo de permanência mais alongado nas prisões tem “efeitos secundários” nos prisioneiros e familiares?
Donald Clemmer (1940), fala-nos sobre o efeito da “prisionização” (assimilação dos valores da cadeia), segundo o qual, quanto mais tempo um indivíduo estiver em contacto com os valores da prisão, menor conformidade concede aos valores externos a ela, às normas convencionais. Uma vez que os valores prisionais são “criminogêneos” reproduziria, uma vez no exterior, os valores ali apreendidos. Esta teoria provocou, por parte de alguns autores, várias críticas e novas abordagens. Por um lado o modelo das privações (Sykes e Messinger, 1960), que afirma que “(...) a necessidade de colmatar as privações provocadas pela cadeia produz uma cultura prisional e novos actores dali derivados (o desenrasca, o contrabandista, etc). Por outro lado, aparece o modelo de importação directa, em que “os valores exteriores se entrosariam com os valores internos e seriam combinados conforme as estratégias e o tempo de institucionalização” (Irwin e Cressey, 1962). Estes dois modelos concordam no facto do código de valores interno constituir o garante de um certo equilíbrio regulador da vida e da ordem na cadeia. Mais tarde Jonh Irwin (1970) dirá que o código do recluso foi substituído por vários códigos parciais mais frágeis e tendo como base os “gangues” ou grupos.
A sociedade é pautada pela existência de várias esferas de vida dissociadas e com identidades diferentes (professor, aluno, pai) e a estas correspondem esferas sociais determinadas (amigos, colegas, família). Para Goffman (1968), as instituições totais (prisões, asilos, hospitais, etc.) fazem convergir estas esferas num só espaço, numa só identidade. Para este autor, estas instituições servem para separar os internos do resto da sociedade (Ferreira, 1995), criando assim uma tensão entre o que é vivido e o que foi vivido anteriormente fazendo do cárcere, um parêntese, uma realidade intervalar.
Historicamente existem dois tipos de modelos de gestão da prisão, o clássico e o burocrático-legal (Barak-Glanz, 1981): i) O primeiro modelo, o clássico, com o poder absoluto de um director autoritário, que exerce um domínio discreto sobre funcionários e reclusos com a manutenção da ordem assente entre uma estrutura formal (regras internas) e uma informal (dos reclusos) paralela à primeira. ii) O segundo modelo, mais moderno, que não reconhece a estrutura informal e onde a todos são aplicadas as mesmas regras. O poder do director é limitado por regras por ele não estabelecidas, agora coordenadas por regulamentos internacionais que homogeneízam as práticas. Esta gestão proporciona ao recluso novos serviços na esfera do afectivo, do sexual, do educacional, etc. (com limitações intrínsecas). Esta abertura ao exterior criou uma contiguidade entre o exterior e o interior da prisão (Cunha, 2010) que, se por um lado alterou a vida dos reclusos, por outro institucionalizou a dos seus familiares, sobre tudo a das mulheres dos reclusos que se viram forçadas a uma “prisionalização secundária” e cujas vidas passaram a pautar-se pelos ritmos das cadeias.
Cunha (2008) fala-nos da prisão, sobretudo a partir dos anos 90, como um prolongamento, não só das casas, mas do bairro. Os bairros periféricos transformaram-se em depósitos das classes economicamente mais desfavorecidas e cujos habitantes, decorrentes dessas dificuldades, estão mais abertos a desvios e transgressões. Neste caldo de dificuldades e oportunidades desviantes, inicia-se um processo de entradas e saídas de prisão onde estão envolvidos familiares e vizinhos, todos eles dependentes de economias subterrâneas. A pressão policial sobre estes bairros, sobretudo sobre a economia das drogas onde a sua autoridade é mais autónoma e baseada em pressupostos discriminatórios, faz aumentar os índices de prisão preventiva e, desta forma, a prisão deixa de ser um intervalo social e transforma-se num contínuo movimento de vivências entre o exterior e o interior, criando uma sociedade de redes familiares e de vizinhança que se relacionam intra e extra-muros e onde o elo mais comum é a pobreza.
Por estas razões a prisão, longe de ser “reintegradora” como foi inicialmente idealizada, estruturada para o controlo do desvio e da transgressão, transformou-se num instrumento de controlo social sobre a pobreza, lançando os mais carenciados e marginalizados para uma espécie de armazém humano chamado prisão. Usar a prisão como um aspirador dos rejeitados pela sociedade (sem abrigo, toxicodependentes, doentes mentais, desempregados, estrangeiros clandestinos, pequenos delinquentes ocasionais). Faz-se desaparecer essas pessoas durante um tempo, mas isso é como pôr o lixo debaixo do tapete” (Pereira, 2009).

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