17 de março de 2010

Memórias de Hospital V


A primeira noite, como já esperava, foi longa e prolífera em perturbações, não pela posição em que fui obrigado a dormir ou pela estranheza do local, mas pela ruidosa vizinhança que, apesar de timidez e formalidade espertina, quando Hipnos, deus tantas vezes glorificado, comparecia, dava início uma serenata que, pela qualidade dos seus instrumentos, mais semelhava decomposição sinfónica que ronqueio dissonante. Quando os roncos à capela tiveram início, primeiro um, depois outro, depois mais dois, nada fazia prever o crescendo gradual do volume nem a intervenção da soma dos restantes ocupantes do quarto, todos sinfonistas inconscientes de instrumento respiratório obturado, mais grave quanto maior o mal ou os vícios suportados anos a fio fruto da idade ou das mucosidades segregadas. Quando a coisa parecia ser insuportável e não poder ser mais agoniante o som por razões de limitações faríngicas obvias, eis que o crescendo foi transformado em sforçando e aos acompanhamentos vocais foram somados outros sonoros e desagradáveis acompanhamentos fisiológicos que o requinte do texto me impede de mencionar. Foi aqui que o concerto se transformou em desconcerto e o desespero fez com que me lembrasse dos tempos de exército obrigatório e tentei dar solução a desarmonia musical com um ruído de breve aplauso que terminou por vencer as hostes de um Apolo embriagado e descontrolado. O silêncio apareceu repentinamente e, durante segundos, parecia ter tomado o lugar que lhe pertencia até que, por obra do diabo, a musa da apnéia voltou a inspirar os improvisados jograis dedicando os seus sons, não ao deus da música, mas ao deus nos acuda. 
Assim transcorreu a primeira noite, entre a posição fixa de olhos postos no telhado pela colocação do corpo e os olhos postos no céu com a esperança que acabasse a sinfonia. São estas ocasiões que nos recordam os tempos de juventude e infância em que alegres brincávamos perto do hospital e após minutos de risos provocados pelos jogos de que tanto gostávamos, éramos abordados por um agente de segurança que nos reprimia as acções com um inflamado discurso sobre a necessidade de descanso dos pacientes internados. Agora vejo que o mal não vem de fora.

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